Há uma famosa tipologia criada pelo
ex-secretário da Defesa norte-americano (Donald Rumsfeld, citado por
Ferguson: 2013, p. 168) que diz o seguinte: há coisas que (a) “sabemos
que sabemos”, (b) “sabemos que não sabemos” (que ignoramos) e (c) “não
sabemos que não sabemos” (achamos que sabemos, mas não sabemos, ou seja,
ignoramos que ignoramos).
A essa tríplice tipologia eu gostaria de
agregar uma quarta possibilidade: há coisas que os outros sabem e que
nós não queremos saber (coisas que queremos ignorar conscientemente).
A
primeira ilumina a esfera do nosso saber (é o nosso conhecimento); a
segunda demarca o âmbito da nossa ignorância sabida (“só sei que nada
sei”, diria Sócrates); a terceira constitui a esfera da nossa ignorância
ignorada (coisas que nem sequer sabemos que ignoramos); a quarta é o
campo da ignorância deliberada = cegueira deliberada (aquilo que
deliberadamente não queremos saber). Em síntese: conhecimento,
ignorância sabida, ignorância ignorada e ignorância deliberada.
Quando falamos de criminalidade e
segurança pública (medidas e programas de reação bem como de prevenção
do crime e da violência) paralelamente às coisas que sabemos há muita
coisa que não sabemos (ou não queremos saber), é dizer, que ignoramos ou
que queremos ignorar. O que sabemos?
Em primeiro lugar, sabemos que a
violência epidêmica é uma realidade objetiva no nosso país (27,1
assassinatos para cada 100 mil pessoas em 2011), que a criminalidade vem
aumentando anualmente (20% da população sofreu ataques criminosos nos
últimos doze meses, conforme pesquisa da Secretaria Nacional da
Segurança Publica/Datafolha), que o Brasil é o 16º país mais violento do
mundo, que a América Latina e a África são as duas regiões mais
violentas do planeta, que a política preventiva no Brasil é praticamente
inexistente e totalmente ineficaz, porque as taxas delitivas só estão
aumentando, que a Justiça é morosa, que a quantidade de leis penais é
exorbitante etc. Esse é o campo daquilo que sabemos.
Em segundo lugar, no que diz respeito
ao saber socrático (“Só sei que nada sei”), sabemos que nada sabemos
(por exemplo) sobre a sugestão central da política preventiva de
Beccaria (1764, Dos delitos e das penas), de que as penas deveriam ser suaves, justas, rápidas e certas (infalíveis).
Isso nunca foi experimentado (sistematicamente jamais) no Brasil, onde
as sanções penais não são (em regra) suaves nem rápidas nem muito menos
certas (infalíveis).
Ao contrário, o que é certo é o elevado grau de
impunidade, a começar pelos homicídios: somente cerca de 5 a 8% deles
são devidamente investigados e processados – veja as pesquisas
realizadas pela Associação Brasileira de Criminalística, que apontam que a taxa de elucidação de homicídios no Brasil varia de 5% para 8%.
Percentual que nos Estados Unidos é de 65%, no Reino Unido é 90%, e na
França é de 80%. Uma taxa baixíssima e vergonhosa, que contribui para
fomentar ainda mais a sensação de impunidade no país.
Também sabemos que não sabemos
cientificamente muita coisa sobre vários fatores tidos como relevantes
para a redução da criminalidade (número de policiais, polícia
comunitária, iluminação das vias públicas, gastos com segurança pública,
melhora na educação, redução da miséria etc.), em razão, sobretudo, da
precariedade dos dados empíricos disponíveis.
Em terceiro lugar, os legisladores brasileiros assim como a criminologia populista-midiática-vingativa (veja nosso livro Populismo penal midiático:
Saraiva, 2013) acham que sabem, mas nada sabem sobre o real efeito
preventivo (a) da edição de novas leis penais e do agravamento das
sanções ou da execução penal assim como do (b) encarceramento massivo
abusivo, que inclui a prisão das classes tidas como perigosas, mesmo sem
o cometimento de crimes violentos. Aliás, são esses os dois eixos (o
núcleo duro) da política “preventiva” da criminalidade no Brasil. Mas
com essa política “de mão dura” a criminalidade nunca reduziu. Ao
contrário, só está aumentando.
Ancorado em sua ideologia
conservadora e reacionária (classista) o legislador brasileiro já
reformou nossas leis penais 150 vezes, de 1940 a 2013 (72% com mais
rigor penal): jamais qualquer tipo de crime a médio ou longo prazo
diminuiu! Essa é uma realidade empiricamente incontestável (veja nosso
livro Populismo penal legislativo, Saraiva, no prelo) que devemos
saber. Essa, ademais, é a verdade. Esconde-se a verdade por meio do
discurso das mentiras ou das meias-verdades.
A considerarem os resultados pífios
até aqui alcançados com essa política exuberantemente repressiva, são os
legisladores, em razão da sua reincidência habitual, que necessitam ser
ressocializados, no sentido do capitalismo financeiro inteligente
(evoluído, distributivo), como o praticado na Suécia, Suíça, Noruega,
Dinamarca, Finlândia, Canadá, Japão, Coréia do Sul etc., e
ressocializados muito antes daqueles desdentados e subnutridos (das
classes sociais inferiorizadas) que, mesmo sem praticar crimes violentos
(mesmo não sendo perigosos), estão superlotando os presídios
brasileiros, presídios esses que escondem os ilegalismos (a corrupção e
os crimes) de todos os criminosos que não estão dentro dos presídios.
Mesmo diante da ausência de estudos
científicos sérios, que fundamentariam o modelo eminentemente repressivo
praticado no Brasil, insiste-se nessa política reativa como se fosse a
solução para o problema da violência e da insegurança. Considerando-se
que nenhum crime diminuiu nos últimos decênios, só resta concluir que se
trata de uma política simbólica, enganadora, que ostenta ademais alguns
aspectos nitidamente irracionais (leis confusas, cortes
inconstitucionais de direitos e garantias fundamentais, acentuada
preocupação com a edição de leis novas quando o correto seria buscar o
“império das leis existentes” etc.).
Em quarto e último lugar, há uma
infinidade de coisas que os outros sabem, que o mundo civilizado sabe e
que muita gente (dos países mais atrasados) não quer saber. Nos países
de capitalismo avançado e distributivo (Dinamarca, Suécia, Suíça,
Noruega, Finlândia, Canadá, Japão, Coréia do Sul, Alemanha, Áustria
etc.) eles sabem muito bem, por exemplo, que o sistema penal não precisa
ser rigoroso (na Noruega a pena máxima é de 20 anos de prisão) para
dotar o país de segurança ou para contar com baixíssimo índice de
violência (menos de um ou dois assassinatos para cada 100 mil pessoas),
que o controle rigoroso da corrupção torna o sistema penal mais eficaz,
que a polícia comunitária produz efeitos preventivos mais sólidos etc.
Sabem, ademais, que existe (ao que tudo indica) relação direta entre IDH, desigualdades e homicídios.
Disso as classes burguesas dominantes do capitalismo retrógrado e
absurdamente desigual (como é o caso do capitalismo liberal
verde-amarelo) não querem saber (não lhes interessa saber). Estamos no
campo da cegueira deliberada.
Outro fator que muitos outros países
sabem e que muita gente não quer saber é que a violência tem tudo a ver
com os quatro eixos (as instituições nucleares) da cultura ocidental:
(a) Estado/democracia, (b) capitalismo, (c) império da lei e (d)
sociedade civil. Fundamental, ademais, é saber a qualidade da política
criminal de cada país, ou seja, se ela é (exclusiva ou eminentemente)
preventiva ou repressiva (ou se se trata de um modelo misto) e se está
fundada na racionalidade ou na irracionalidade (emotividade e
passionalidade, tal como descrevera Durkheim).
Em suma, para além da análise de
todos os marcos referenciais mencionados anteriormente, nenhuma política
criminal poderia deixar de levar em conta: (a) as pistas sinalizadas
pela relação entre o IDH, a desigualdade e os índices de homicídios, (b)
o nível de efetividade – ou de decadência e degeneração – das
instituições nucleares da civilização ocidental (Estado/democracia,
capitalismo, império da lei e sociedade civil, ou seja, as instituições
políticas, econômicas, jurídicas e sociais), que abarcam as “caixas
pretas” da política, da economia, do campo jurídico e do âmbito social e
(c) a racionalidade ou irracionalidade da política criminal que vem
sendo praticada.
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